O Natal do Vale das Canas

Na cozinha, ao fundo do estreito e comprido corredor decorado com vasos de verduras, estava, junto à janela vistosa pró mar, a árvore de Natal, a mais bonita que já se vira por ser a sua. A mulher era a responsável por tamanha beleza e tinha com ela, ali, junto ao obrigatório mar que os cercava, todo o tempo do mundo.

As lâmpadas cintilavam atrás das janelas. À frente da casa, caía a escarpa de pedra basáltica que se precipitava no mar. As luzes de Natal das casas do Vale das Canas, durante as escuras noites de dezembro, eram farol para os barcos pesqueiros de boca aberta. É ali a Relva.
O homem desta crónica de Natal conhecia quase todos os pescadores das redondezas, por lidar com eles na compra do seu alimento de eleição, o chicharro. Montava a sua mota de caixa atrás e, quase todos os dias, pelas madrugadas azuis, ia esperar os barcos ao porto para comprar o peixe fresco que o regalava.

Na cozinha, ao fundo do estreito e comprido corredor decorado com vasos de verduras, estava, junto à janela vistosa pró mar, a árvore de Natal, a mais bonita que já se vira por ser a sua. A mulher era a responsável por tamanha beleza e tinha com ela, ali, junto ao obrigatório mar que os cercava, todo o tempo do mundo. Nada acontecia. Porém, na época festiva, o cheiro a cedro e a musgo de enfeites e do presépio da casa trespassava as portas e janelas e invadia a rua, perfumando-a.

O nosso homem, como agricultor que era, tinha a tez crispada de sal, de sol e de frentes frias do sudoeste. Trabalhava até ao fim da luz do dia. Fazia uns quantos alqueires de terra que confrontavam com a pista do aeroporto de Ponta Delgada. A mulher acompanhava-o e, não raramente, ajudava-o no amanho da terra. Certo Natal, decidiram, sabe-se lá porquê, queimar as canas que abrigavam as novidades da rispidez do vento e, foi tal a intensidade das chamas ao lado da pista que a direção do aeroporto teve que interditar o tráfego aéreo, até que os bombeiros extinguissem o incêndio. O nosso casal, ao ouvir as sirenes, meteu-se na mota e pernas para que te quero. Vale das Canas outra vez.

A motoreta não andava, arrastava-se, face ao peso da consorte do agricultor. A obesidade da ocupante esvaziava-lhe as rodas. E, retalhada que estava por soldaduras de 50 anos de martírio, a mota perdera irremediavelmente resistência e deixara de oferecer segurança. Nesta tarde de fuga, como sabemos, e também de véspera de Natal, o cansado veículo rasgava penosamente a paisagem, na ânsia de galgar rapidamente as irregularidades da canada para se acoitarem na segurança da casa do Vale das Canas. Foi assim que entre fumos e ruídos inconvenientes do motor da mota, que não tinha escape nem panela, que algo aparentemente inexplicável aconteceu.

O nosso agricultor chegou a casa sem mulher. Por mais que olhasse o ar transparente que ocupava o lugar onde ela deveria estar, esta não aparecia. Volatizara-se, esfumara-se sem que ele pudesse compreender o extravio. E foi a muito custo, como quem se ergue de um golpe de espanto, que notou a ausência da caixa-atrás. Afinal, o sumiço era maior do que supusera. Incluía também parte da mota o que explicava o desaparecimento da mulher.

Ela e meia mota foram-se. A caixa-atrás, num dos solavancos do motociclo desprendera-se. Provavelmente ela gritara. Mas quem a poderia ouvir em aflição? Nada a fazer! Era voltar atrás e resgatar a desafortunada.

Foi o que fez.

E lá estava ela, numa curva do caminho, sentada na caixa da carrinha. Sem um arranhão. Do fogo ateado, não se soube mais nada, o que era bom, pois as notícias más correm depressa. Boas prendas de Natal. Escapara de boa nas terras junto ao aeroporto e salvara a mulher. Era aproveitar e saborear a ceia de peixe e o “Menino mija”, isto é, beber os licores de chá e de maracujá ciosamente guardados para a Noite de Natal à beira da árvore iluminada junto à janela da cozinha no Vale das Canas.