Paralelo 38: Açores, pandemia e Constituição

Vasco Cordeiro não desarma. Persiste na fuga para a frente, aplaudida pela maioria dos açorianos. Neste caso, ter medo é ser corajoso. Para um problema de saúde pública sem precedentes, o presidente dos Açores optou por medidas excecionais de salvaguarda da segurança e da vida dos ilhéus.

A 23 de maio, o Wordometers destaca, entre 213 países e territórios por todo o mundo afetados pelo novo coronavírus, 18 que se encontram totalmente recuperados da infeção. Com exceção de Macau, o Saara Ocidental e a Eritreia, todos eles são regiões insulares. As ilhas açorianas, registando presentemente apenas 20 casos ativos, num total de 142 casos de doentes com covid-19, não integram ainda a lista do Wordometers, mas estão à beira de atingir a categoria de região sem casos ativos. Desde 17 de maio que não surgem novas ocorrências nos Açores, o que poderá indiciar o desaparecimento do vírus pandêmico na região. Poder-se-á considerar este arquipélago outro caso de sucesso a nível mundial no combate à Covid 19? E pergunta-se por que razão as ilhas serão os primeiros lugares a libertarem-se do novo Coronavírus. O isolamento não será basilar para superar uma crise sanitária desta natureza?

A realidade pandêmica nos Açores teve outros contornos face às demais regiões do país. O novo coronavírus chegou 15 dias depois de ter entrado em Portugal continental. Foi a 15 de março, e a sua propagação, como nos demais locais, foi rápida no início, sendo travada por medidas assertivas e atempadas do Governo Regional dos Açores. A resposta musculada do executivo regional considerou  o isolamento territorial, a exiguidade das parcelas insulares, a dispersão da população por 9 ilhas e os parcos recursos para a saúde existentes fatores fundamentais para a tomada de medidas apropriadas de combate à pandemia que ameaçava o arquipélago. A título de exemplo, atendamos ao facto de haver apenas três hospitais para nove ilhas.  Deste modo justificou-se o rol de cuidados impostos – às vezes tidos como excessivos – pelo Governo Regional dos Açores, que pretendeu controlar, amiúde, a disseminação do vírus. Doutro modo, crê-se que a situação poderia ter sido catastrófica numa  população de cerca de 250 mil pessoas isolada do país continental por mais de mil e quinhentos quilómetros de mar.
Ações de sensibilização na televisão e demais órgãos de comunicação social regionais, conferências de imprensa, textos publicados à exaustão nas redes sociais, um serviço regional de saúde manifestamente incansável – mesmo assim às vezes incompreendido – acompanhando e informando ao segundo a evolução da situação, e um presidente do executivo de mangas arregaçadas e de peito aberto às balas, travaram esta pandemia, dentro do melhor que souberam e puderam.
Não obstante, o caminho traçado teve agruras. Vasco Cordeiro e António Costa entraram em confronto direto. O presidente açoriano não conseguiu encerrar os aeroportos regionais a voos do continente para a região autónoma, como forma de conter a possível entrada de novos casos nos Açores; o Primeiro Ministro, evocando direitos, liberdades e garantias e a constitucional liberdade de circulação dos cidadãos, não o permitiu. Cordeiro pôde apenas cancelar todos os voos da SATA Air Azores entre as ilhas e da SATA Internacional de e para o exterior, excetuando, logicamente, o transporte de cargas. Como noutros pontos do país, estabeleceu-se cercas sanitárias entre concelhos mais afetados, medida que se revelou fulcral para a extinção de cadeias de transmissão.  

As quarentenas obrigatórias, em hotéis designados pelo governo da região, geraram alguma oposição interna depois do levantamento do estado de emergência. Os passageiros vindos do exterior do arquipélago, através dos aeroportos de Ponta Delgada e das Lajes, foram confinados em unidades hoteleiras por um período de 14 dias, custeado pelo governo regional. Já no estado de calamidade, a decisão do executivo em custear quarentenas em hotéis apenas a residentes nas ilhas e não a visitantes, gerou alguma oposição de grupos sociais ameaçados pela medida. 

Recentemente, o advogado açoriano Pedro Gomes deu seguimento a um pedido de “habeas corpus” de um seu cliente, então a cumprir quarentena em unidade hoteleira de Ponta Delgada. O causídico, ao abrigo do artigo 220 do código penal, que consagra o “habeas corpus”, defendeu estarmos perante uma “detenção ilegal”, entendendo a juíza de instrução criminal do Tribunal de Ponta Delgada deferir o pedido submetido pelo jurista. Alegou a magistrada que “as quarentenas são inconstitucionais por violarem a liberdade individual dos cidadãos”. Esta decisão anulou a quarentena obrigatória nos Açores. Em resposta, o executivo regional impôs novas medidas dissuasivas que acabam por produzir idêntico efeito face às anteriores. Os cidadãos, à sua chegada aos aeroportos regionais, são obrigatoriamente avaliados e acompanhados nos dias subsequentes à chegada pelo Serviço Regional de Saúde, até estar finalizado o prazo necessário de observação e testes. Vasco Cordeiro não desarma. Persiste na fuga para a frente, aplaudida pela maioria dos açorianos. Neste caso, ter medo é ser corajoso. Para um problema de saúde pública sem precedentes, o presidente dos Açores optou por medidas excecionais de salvaguarda da segurança e da vida dos ilhéus. 

Há que avançar, prudentemente, mas com determinação, para uma revisão da Constituição, que, como acontece no caso presente – outros haverá – sofre de falhas gritantes na resposta a situações de pandemia ou de outras catástrofes desta magnitude, para que as melhores soluções não entrem em conflito com a lei.

O presente desconfinamento poderá resultar num retrocesso e na tão temida segunda vaga pandêmica, mas de momento há  que saudar o sucesso do trabalho  hercúleo desenvolvido pelo Governo Regional dos Açores,  que é um exemplo para o país.

À portuguesa, alguma da nossa comunicação social nacional e continental mais facilmente glorifica a atuação de regiões insulares como a Nova Zelândia, que tem uma situação semelhante à dos Açores, do que as ilhas que tem à frente dos olhos e que pertencem à pátria. Cego é quem não quer ver.

Texto de: João Gago da Câmara