Um Balanço da Década

1. Identidade
A década que agora acaba, a segunda do séc. XXI, tem dois momentos fundadores. Um foi a vitória eleitoral de Viktor Orbán em abril de 2010, na Hungria: o jovem liberal anticomunista de 1989 voltava ao Governo decidido a tornar-se um dos símbolos do que ele próprio cunhou como uma “democracia-cristã iliberal” (2018), prometendo “nunca [se] render” perante “grupos e ideologias que se opõem aos objetivos da existência da Europa e da sua cultura” (2017). Outro ocorreu em julho de 2011: Anders Breivik assassinou, um a um, 69 jovens na ilha norueguesa de Utøya, depois de ter matado à bomba oito pessoas em Oslo e deixar 320 feridos.

Breivik e Orbán partilham valores como os da defesa da supremacia europeia/ocidental, da obsessão com a pureza étnica e a homogeneidade cultural, ambos entendem as migrações e a mudança social e cultural — inerentes a qualquer período da modernidade — como se se tratassem de uma “colonização islâmica da Europa através da guerra demográfica”, diretamente promovida
pelo “marxismo cultural/politicamente correto” (Breivik, 2083: A European Declaration of Independence, postado pelo próprio no dia do massacre). É neste universo que se movem as extremas-direitas (Salvini, Le Pen, Trump, …) do Norte rico e as da América do Sul, com mais ênfase no ódio antifeminista (“a ideologia de género”), anticomunista e anti-indigenista.

Estes mitos e medos, que tanto sucesso tiveram nestes dez anos, não nasceram, contudo, nesta década; e são bem anteriores aos atentados de Paris de 2015, que marcaram a década, como os de Nova Iorque, Madrid e Londres marcaram a anterior. Eles reproduzem “o mesmo mecanismo do ódio” (E. Traverso) de há cem anos, atribuindo conspirações globais a grupos étnicos essencializados na sua religião e nas suas práticas culturais (uma muçulmana não é nem mulher, nem assalariada, nem refugiada: é apenas muçulmana). E também não são bandeiras apenas da ultradireita racista:

passaram a ter um lugar central na articulação política do conjunto das direitas, de Trump a Boris Johnson, dos conservadores escandinavos a Netanyahu ou a Putin. Nem o racismo nem a politização da religião são uma novidade dos anos 2010, mas desde os anos 40 que não haviam sido tão decisivos como foram nos triunfos eleitorais do nacionalista hindu Narendra Modi (2014), do nacional-católico polaco Kaczyski (2015 e 2019), de Trump (2016) ou de Bolsonaro (2018).

No centro desse magma está a identidade, ou melhor, formas diversas de identitarismo, que, primeiro, como qualquer teoria conservadora (e, neste caso, também liberal), recusa discutir a incompatibilidade entre a desigualdade (social, de género ou étnica) e a democracia, e, pelo contrário, diz querer tornar simples o que a investigação, a liberdade de expressão e os movimentos sociais tendem a complicar: não há desigualdade, há preguiça; não há cortes nas prestações sociais, há corrupção e fraude; não há direitos históricos de povos/minorias/grupos oprimidos que foram violados e que devem ser repostos, há inveja de pobre e/ou de economicamente incompetente.

2. Crise, empobrecimento, migrações
A crise do capitalismo financeirizado devastava já as economias do Ocidente mais rico quando a década começou, mas arrastou consigo, a partir de 2015, as economias do Sul (América Latina, a África dependente de commodities), a Rússia e as economias asiáticas. Em Portugal, conhecemos bem o rasto que ela deixou: rápido empobrecimento, esvaziamento das formas liberal-democráticas de representação (decisão económica retirada aos eleitores e restringida a uma aristocracia de tecnocratas e de detentores de capital), exasperação social que leva à remobilização política e/ou à emigração. A vontade de mudar de/o mundo para procurar mudar de/a vida, tão velha quanto a humanidade, continuou a mover milhões de migrantes. Ao contrário do que o eurocentrismo julga, eles não vêm sobretudo de fora para dentro da Europa: 40 dos 75 milhões de imigrantes que vivem na Europa são europeus. Muitos portugueses: nesta década, voltámos a emigrar como não acontecia desde os anos da Guerra Colonial.

Uma pequena, mas dramática, parte dos migrantes são os 22 milhões de refugiados registados pela ONU em todo o mundo. Em torno deles, as extremas-direitas ocidentais criaram uma das narrativas políticas mais bem sucedidas desta década, construída sobre mentiras, reeditando os velhos medos da invasão e da contaminação pelo outro. Ao contrário do que sustenta o discurso securitário dos governos e das direitas, o fluxo de refugiados reduziu-se nos anos 2010 relativamente aos 20 anos anteriores. E não é na Europa ou nos EUA onde eles encontram asilo; pelo contrário, é em países pobres ou muito menos ricos que nós: 45% dos refugiados estão no Médio Oriente, acolhidos fundamentalmente pela Turquia, o Líbano e a Jordânia, três dos países que mais refugiados acolhem em todo o mundo. Nos primeiros dez, há um único ocidental: a Alemanha. O Quénia, o Uganda, o Congo, a Etiópia, o Irão ou o Paquistão acolhem mais refugiados que os EUA, a França ou a Grã-Bretanha! O Mediterrâneo, esse, transformou-se no maior cemitério mundial de migrantes (15,8 mil mortos desde 2014), seguido a grande distância da fronteira México-EUA (3,3 mil mortos).

3. Procurar uma saída
A crise generalizada dos regimes liberal-democráticos, que começara pouco depois de se julgar que estes tinham triunfado com o Fim da História de 1989-91, veio acompanhada nesta década de um novo vigor dos movimentos sociais, sem paralelo desde os anos 70. Na Europa, a França mantém-se um caso excecional de resistência ao neoliberalismo, desde a contestação à reforma das pensões de Sarkozy (2010), a luta contra a reforma da legislação laboral de Hollande/Valls (2016-17), um ano de coletes amarelos (2018-19), as greves destes dias contra Macron.

O austeritarismo adotado pela Eurozona desde 2008 serviu para (i) deixar patente quem está a pagar a criação da moeda única, (ii) provar a vacuidade dos valores sociais da construção europeia (pôr as vítimas das políticas económicas a pagar o resgate de quem as levou à miséria), (iii) mostrar a falta de suporte democrático da gestão da crise (derrota eleitoral de todos os governos sujeitos à intervenção da troika) e (iv) dar vida a uma nova geração da contestação social que, mais do que no passado recente, voltou a discutir a própria natureza do capitalismo, ainda que não o tenha abalado decisivamente. Das seis greves gerais convocadas em Portugal em 45 anos, metade foram-no nesta década (2010, 2011 e 2013). Em 2011, a Primavera Árabe foi um dos maiores movimentos simultâneos de contestação social e política da história, constituindo um modelo à escala internacional para, no mesmo ano, os Indignados espanhóis ou o Occupy Wall Street. No final da década, até mesmo as greves internacionais de mulheres (desde 2017) ou, em menor escala, a greve global pelo clima (2019) foram herdeiras de 2011. É em tudo coerente que a década termine com movimentos sem precedentes no Chile, Equador, Bolívia, Colômbia, Argélia, Líbano, Índia, Hong Kong…
A crise não nos deixou apenas estes novos movimentos sociais: ajudou a reconfigurar a esquerda com o colapso quase geral da social-democracia (com a efémera exceção de Corbyn e a relativa exceção portuguesa). E não só na Europa (França, Alemanha, Itália, …): é também neste contexto que há que ler a derrota do PT no Brasil, de Hillary Clinton, do Partido do Congresso na Índia.